Nesta época do ano, somos convidados a participar de bancas de avaliação dos Trabalhos Finais de Graduação (TFG) – sejam eles nas próprias instituições que lecionamos, sejam eles como convidados externos de outras instituições.
Os temas são sempre muito variados e com a presença das tecnologias digitais – não somente mais os desenhos em 2D – mas as rederizações em 3D ultrarealistas e a presença “invisível” da Inteligência Artificial (IA) me fizeram refletir muito sobre como, em 10 anos, mudou-se totalmente o paradigma de como se avaliar o trabalho de um aluno.
Essa tarefa, que nunca foi fácil, se tornou mais complexa. Até onde vai a escrita autoral e até onde a IA colabora ou mesmo faz esta parte. Eu, por exemplo, uso o bom e velho Power Point, com textos autorais meus, e o programa sugere layouts e apresentações incríveis.
Quando preciso escrever no Word, por exemplo, a IA pergunta qual estilo (normal, formal, neutro) que eu gostaria que o corretor sugerisse mudanças. Em português, eu costumo usar apenas o corretor ortográfico e manter o meu estilo de escrita – mesmo que ele pudesse ser “aprimorado” pela IA – mas assim eu estaria perdendo o meu toque pessoal, o meu jeito de escrever.
Quando tenho que escrever em outras línguas em que não sou falante nativo, o programa sugere reescrever parágrafos inteiros. Há a opção de aceitar ou, baseado nas sugestões, eu mesmo tentar reescrever – mesmo que fazendo isso eu corra o risco de não ser totalmente compreendido em minhas ideias. Eu prefiro esta segunda opção porque, de novo, não seria eu escrevendo e sim um “ghostwriter” melhorando a minha escrita.
E quando saimos da avaliação textual de um trabalho e partimos para a avaliação do projeto em si?
Eu sou entusiasta da IA, testo vários programas, mas sempre falta um toque mais humano, literalmente. A Arquitetura proposta pelos programas de IA carece de algum tempo de amadurecimento ainda. (vide a imagem que ilustra o último paragrafo deste artigo)
Para ideias de fachadas e volumes, não tenho dúvidas de que ajudem muito nas ideias de soluções.
Mas para a solução programática, distribuição de fluxos e dimensionamento de ambientes, não tem jeito: só a mão e a mente humana são capazes – ainda mais porque temos que seguir uma série de regras – sejam de desenho ou sejam as relativas à legislação edilícia e urbanística.
Os desenhos feitos em certos programas paramétricos não entendem a “linguagem brasileira de desenho”, ou seja, a NBR 6492 – antes chamada de Representação gráfica em Arquitetura – que em 2021 foi renomeada para Documentação técnica para projetos arquitetônicos e urbanísticos – Requisitos.
É batata. Eu olho uma escada e vejo que ela não possui patamares intermediários, está escrito “sobe” ou “desce”, sempre pergunto, educadamente, se o desenho foi feito pelo software “X” e a resposta, inevitavelmente, é sim.
No Brasil, escadas só indicam o sentido de subida, acompanhada de uma letra “S” e de um símbolo de seta, cujas dimensões são as mostradas abaixo:

Certa vez, ante a resposta afirmativa do aluno e ante a verificação de que a escada estava de fato “errada” (além de não ter patamares, era helicoidal e não respeitava o número mínimo de unidades de passagem para escolas), voltei à velha reflexão de darmos à IA ou a tecnologia o poder de decidir por nós.
Uma escada desenhada errada, na “vida real”, é um erro que é inconcebível de ser aceito. Imagine o engenheiro fazer todas as formas de uma escada, construir, e na hora do “habite-se” constatar que não atende a IT-11 do Corpo de Bombeiros (no caso de São Paulo) ou a NBR 9077 (nos municípios onde não há explicitamente no Código de obras a explicação de qual orientação seguir).
Para refletir: e se a escada estivesse em uma escola infantil, montessoriana, onde as crianças são encorajadas a ter autonomia total, como se resolve a questão da altura dos espelhos?
Para uma pessoa adulta, 17,5 cm ou 18cm são as alturas usuais utilizadas em espelhos de escadas e atendem a Formula de Blondel e aos Bombeiros.
Dentro das salas de aula montessorianas usualmente são instaladas escadas para que as crianças aprendam a usá-las – mas são escadas que não atendem a fórmula de Blondel e nem aos Bombeiros.

Por um lado está OK, pq não são rotas de fuga e sim espaços de ludicidade, mas e se o projeto se propõe a utiliar de escadas autônomas em todas as suas instalações de uso comum, como proceder?

Na imagem acima, do mesmo artigo escrito pelo site Archdaily, nesta escada de uso comum, percebe-se que a altura dos degraus são menores que 17,5-18 cm – portanto não serviriam como rota de fuga. Para a circulação de professores e demais adultos seria necessário criar uma segunda escada, com as medidas que atendam bombeiros e Blondel.
Na imagem abaixo, de outro projeto, é possível ver a escala das crianças em relação à escada e perceber que, novamente, não se aplicam às normas brasileiras.

Ao escolher estudos de caso para os projetos, alunos e professores devem estar sempre atentos à avaliar se àquela realidade apresentada como referência de fato se aplica em sua totalidade, em relação às nossas normas. Em geral, não.
Somos o país que mais tem leis no mundo, e o processo de praticar a Arquitetura e Urbanismo não foge desta responsabilidade. A vida profissional vai exigir do futuro arquiteto atenção redobrada ao perceber que a intenção de projeto nem sempre é totalmente aplicável dentro da realidade.
Como costumo dizer aos meus alunos: por se tratar de um trabalho acadêmico, certas liberdades “poéticas” são válidas DESDE QUE se coloque claramente que se sabe desta ou daquela interferência legal, mas que por razões de ser um estudo preliminar e acadêmico não se está sendo considerando.
A imagem abaixo foi gerada por IA com o seguinte prompt: “gere uma imagem do interior de uma escola montessoriana, onde pode-se ver, com destaque uma grande escada helicoidal, por onde algumas crianças estão descendo”
Está aí a prova de que a IA ainda precisa do toque humano, para não virar uma obra de Escher.


Para citar este artigo corretamente:
SBARRA, Marcelo. Reflexões sobre o uso da tecnologia na avaliação de trabalhos acadêmicos. Marcelo Sbarra, São Paulo, 04 dez. 2024. Disponível em: https://marcelosbarra.com/2024/12/04/reflexoes-sobre-o-uso-da-tecnologia-na-avaliacao-de-trabalhos-academicos/ Acesso em 04 de dez. 2024.
Observação importante: estas informações são direcionadas a projetos acadêmicos – para projetos “da vida real” é indispensável a contratação de um Arquiteto para a verificação das necessidades de seu projeto e adequações à legislação de sua municipalidade.
© Marcelo Sbarra. Os projetos mostrados neste artigo são protegidos pela Lei de Direito Autoral (Lei 9.610/98) e Resolução 67/2013 do CAU/BR.