Tendo em vista o recente lançamento de uma série de empreendimentos com apartamentos cujas áreas variam entre 10m2 e 20m2 no mercado imobiliário de São Paulo é preciso fazer uma reflexão a respeito da atuação profissional do Arquiteto Urbanista.
A idéia da “unidade mínima” não é um tema recente na Arquitetura.
Habitar é a função arquitetônica mais antiga e nasce com a necessidade de nossos ancestrais na Pré-História deixarem o nomadismo e as cavernas e a construir as primeiras cidades.
A cidade nasce na Antiguidade e recebe a influência de diversos povos (babilônios, assírios, persas, etc). Mas é através da cultura dos gregos e romanos que conseguimos reconhecer a cidade, tal como a reconhecemos hoje no ocidente, através de referências de setorização por uso do edifício, programas de necessidades, sistemas de quadras e lotes, etc.

Neste contexto histórico, a função da Arquitetura já unia a necessidade básica (ex: morar) com um pensamento acerca de fatores de conforto ambiental, setorização de ambientes (público, semi-público, estar, lazer, descanso, preparo de alimentos, etc.). As classes mais abastadas contavam com as moradias mais luxuosas e maiores (as Domus) enquanto que escravos, ex-escravos e trabalhadores dividiam pequenas residências (as Insulae) – muitas vezes compartilhadas e em lugares afastados.
Parece familiar, após mais de dois mil anos de História.
Se dermos um salto Histórico para a época da Revolução Industrial, em meados do século XIX, as cidades londrinas – que foram territórios romanos e cujo traçado da cidade herdou suas características – as Habitações já não conseguiam acomodar a quantidade de pessoas vivendo na cidade (e não no campo), amontoadas em prédios sem afastamentos entre si que garantissem entrada de sol, ventilação adequada e qualidade ambiental. As indústrias lançavam no ar poluentes que tornaram a cidade “cinza”; a população é vítima de uma série de doenças causadas pela falta de salubridade das habitações (que incluia uma rede de esgotos ineficiente ou mesmo inexistente em alguns lugares).

Surgem os primeiros Códigos de Obras, com o intuito de regrar a construção das cidades. Surgem Tratados de Arquitetura propondo soluções (muitas das quais utópicas) para a cidade: os falanstérios, Cidades do Amanhã, etc. Em São Paulo, o Código de Posturas (1886) já versava sobre a altura das edificações e largura de ruas, por exemplo.
No começo do século XX, Le Corbusier encontra espaço para suas idéias e ideais de Arquitetura. Seu discurso é bastante envolvente e apaixonado. Suas publicações – dezenas – explicam não só como ele entende como a cidade deva ser (o “novo Urbaismo”) mas como as Habitações (suas “máquinas de morar”) devam ser.
Suas idéias influenciam fortemente a construção de novas cidades, durante quase todo o século XX.
Se inicialmente suas casas (como a Villa Savoye-1928) são espaços para que os seus “cinco pontos da Arquitetura” encontrassem espaço para exposição sendo, no entanto, voltadas para um grupo muito seleto de pessoas que podiam comprar este tipo de arquitetura, as duas Grandes Guerras lhe deram espaço para propor as “Unidades de Habitação (1947)” – enormes edifícios residenciais multifamiliares, voltados para um público de classe média-baixa e compostos de apartamentos com “medidas mínimas”.

O edifício como objeto arquitetônico possui características típicas da Arquitetura Moderna. Os apartamentos, propriamente ditos, eram espaços reduzidos ao mínimo, literalmente.

Este tipo de Edifício veio a influenciar todas gerações seguintes de Arquitetos: nas cidades brasileiras conseguimos identificar inúmeros exemplos – que resultam em objetos arquitetônicos que podem ser analisados somente como “objetos inseridos na paisagem”, com suas qualidades e defeitos ou, como acredito ser mais importante, através da análise de suas unidades habitacionais.
Paralelamente à construção de Edifícios com apartamentos com dimensões voltadas para a chamada classe média-classe alta – onde apartamentos de 2 quartos chegavam a quase 100 m2 – também são produzidas as chamadas “quitinetes”; estes padrões de construção se alastratam no Brasil principalmente nos anos 1950-1970, onde o êxodo rural causava um enorme déficit habitacional nas grandes capitais.
No resto do mundo, este tipo de Arquitetura de massas e sem qualidade projetual já era bastante criticado, sendo uma das principais obras o livro de Jane Jacobs, Morte e Vida das Grandes cidades, de 1961.
Nos anos de 1980-1990, com a melhoria de renda de parte da população brasileira, ganha força o chamado Mercado Imobiliário. Os lançamentos voltados para a classe média se “padronizam” e a Arquitetura como Objeto inserido na paisagem acaba deixando – infelizmente – de ser uma discussão sobre Formas, Volumes, Cheios e Vazios para se tornar, na maioria das vezes, meras repetições – é possível encontrar edifícios “idênticos”em diferentes regiões da cidade, mas em lotes e situações urbanas totalmente diversas.
O Código de Obras do Município de São Paulo (1992) previa tamanhos mínimos para ambientes residenciais, de forma a dar espaço necessário às atividades do morar e, mais do que isso, previa as Faixas de Aeração (Faixa A) e Faixas de Insolação (Faixa I), que garantiam conforto ambiental às unidades e afastamentos maiores entre os edifícios e eram calculadas de acordo com a altura da edificação.
Veja alguns artigos que publicamos sobre medidas mínimas do COE (1992): quartos e salas, cozinhas e banheiros . Observe que algumas dessas medidas já não valem agora que temos o novo COE (2017)
Durante mais de vinte anos o Mercado adotou o padrão “mínimo” como o padrão a ser seguido. As Faixas A e I garantiam salubridade e conforto.
Com o Novo Código de Obras Do Município de São Paulo (COE/2017), não existem mais as Faixas A e I. As dimensões míminas dos ambientes residencias foram revistas e, como o próprio COE (2017) dá como premissa, a NBR 15575- que também trata de dimensões mínimas de ambientes – tem que ser obrigatoriamente seguida. Todas as NBR`s tem que ser obrigatoriamente seguidas, ainda que os assuntos que tratem se sobreponham a outras normas, Leis, Decretos, Vigilância Sanitária, Bombeiros, etc.
Mas como explicar, então, que em 2017 estejam sendo propostos apartamentos de 10m2?
A resposta é simples, porém bastante lamentável. Embora o Código de Obras estabeleça as dimensões mínimas para quartos, salas, banheiros e cozinhas em NENHUM lugar em NENHUMA lei ou Norma há a definição do que seja um apartamento.
Isso mesmo.
Isso leva as construtoras a poderem construir apartamentos que sejam compostos APENAS por uma SALA (que funcione ao mesmo tempo como QUARTO) e um BANHEIRO.
Isso mesmo.
A COZINHA deixa de existir como um AMBIENTE propriamente dito. Basta que o “autor” do projeto escreva “APA” – Área de Preparo de Alimentos – que o espaço mínimo exigido para uma “cozinha” NÃO seja exigido. Coloca-se uma bancada com pia e sem fogão a gás (é admitido apenas microondas ou cooktop) devido a ventilação permanente exigida em caso de cozinhas.
Desta forma, INFELIZMENTE, surgem os apartamentos com 8 ou 10m2.
A justificativa oficial é de que é uma maneira de se conseguir atender ao déficit habitacional e de que pessoas solteiras – e sem grandes rendas – consigam ter acesso à habitação. Os dois argumentos vão abaixo pois há milhares de apartamentos não-comercializados pelas construtoras (“encalhados”) devido à recente crise econômica do país e porque o metro quadrado dessas “unidades mínimas”estão sendo comercializados a mais de R$ 10.000,00/m2, gerando apartamento de 10m2 sendo vendidos a mais de R$ 100.000,00.
Como adaptar um apartamento dessas dimensões a NBR 9050? Como o usuário de cadeira de rodas consegue viver numa unidade deste tamanho? E um idoso?
A atuação do Arquiteto Urbanista tem que incluir uma reflexão crítica sobre a produção da cidade mas, principalmente, para a qualidade de vida das pessoas para quem estamos pensando os espaços.
O que impede que ao invés de pessoas solteiras, famílias inteiras com 3, 4, 5 pessoas passsem a morar nesses apartementos “mínimos”? Que tipo de qualidade de vida essas pessoas terão?
Precisamos repensar como o Mercado atua. Precisamos nunca perder de vista a função social de nossa Profissão.
Precisamos lembrar que ajudamos a construir um mundo melhor.
Em minhas aulas estimulo meus alunos – e futuros Arquitetos Urbanistas – a não pensarem no “mínimo”. Produzimos espaços para pessoas, famílias, gerações que irão desfrutar daqueles ambientes.
Sei que pode ser um pouco utópico pois esses estudantes ao se formar irão ter que trabalhar em um Mercado que dita as próprias regras. Mas é minha função social como Arquiteto e como Professor dar a eles uma visão mais humana – e crítica – sobre a questão.
Estas informações são direcionadas a projetos acadêmicos – para projetos “da vida real” é indispensável a contratação de um Arquiteto para a verificação das necessidades de seu projeto e adequações a legislação de sua municipalidade.